terça-feira, 12 de abril de 2011

FAMILIA ESCRAVA E TRABALHO

Família escrava e trabalho
Robert W. Slenes
*
Sheila de Castro Faria
• *
* Professor do Departamento de História da UNICAMP.
** Professora do Departamento de História da UFF.2


Apesar de certas premissas básicas serem aceitas por um grupo numeroso de historiadores atuais, a história da família escrava no Brasil vem suscitando inúmeras divergências de interpretações. Foi com base nestas divergências que se montou uma sessão, no II Encontro de História da UFF, intitulada “Família Escrava e Trabalho”, composta pelos seguintes pesquisadores: Robert Slenes, Manolo Florentino, José Roberto Góes, Luiz Carlos Soares, Sheila de Castro Faria e coordenada por Ronaldo Vainfas. Nas páginas que se seguem está, na íntegra, a intervenção de Robert Slenes, que a entregou por escrito ao coordenador da mesa, seguida de um balanço crítico dos debates então travados, redigido por Sheila de Castro Faria.


Robert W. Slenes
É importante lembrar, de início, o ponto de partida do debate nos últimos anos sobre a
família escrava. Nas décadas de 1950 e 1960, tanto a historiografia brasileira quanto a norteamericana formulavam em primeiro plano, nas discussões, a questão relativa ao caráter e às conseqüências da escravidão. No Brasil, Florestan Fernandes e Roger Bastide expressaram o consenso sobre o assunto de forma mais clara. Por razões demográficas (o excesso de homens sobre mulheres no tráfico africano) e como resultado de uma política senhorial de (nas palavras de Fernandes) “tolher e solapar” todas as formas de solidariedade entre os cativos, a “família” escrava
– não apenas a “linhagem”, mas também a família conjugal/nuclear, com o pai “presente” na vida dos filhos – praticamente inexistiu. “Perdidos uns para os outros”, sem laços sociais para recriar sua cultura e identidade, os escravos eram reduzidos a “condições anômicas de existência”.

Como resultado (segundo Bastide), eles internalizavam as normas brancas, chegando subconscientemente a identificar seu senhor como “pai”; mais sério ainda (Fernandes), eles não tinham condições de participar do processo da “Revolução Burguesa” no Brasil como agentes sociais de relevo, como fizeram os imigrantes e uma fração dos fazendeiros do oeste paulista. Finalmente (Fernandes), eles não puderam enfrentar com sucesso a concorrência dos imigrantes, depois da abolição, por não desfrutarem das instituições de ajuda mútua e dos valores favoráveis à mobilidade que a família propiciava.


Fernandes e Bastide estavam sintonizados com a bibliografia internacional de sua época,
inclusive a norte-americana. O mesmo se pode dizer dos historiadores que começavam a questionar suas conclusões sobre a família escrava a partir dos anos 1970. O Ser escravo no Brasil de Katia Mattoso já reflete a mudança de paradigmas na história social iniciada no final da década de 1960. Mattoso desconfiava da idéia de que um grupo subalterno – mesmo que escravizado – pudesse ser totalmente “domesticado”, psicológica e culturalmente, por seus dominadores; e não dava à família conjugal a importância exagerada, no que diz respeito à socialização das crianças, que a sociologia norte-americana lhe concedia alguns anos antes. (Ver, por exemplo, Talcott Parsons e Robert Bates, Family and Interaction Process, refletindo as mesmas pressuposições que a bibliografia da época sobre as “conseqüências” sociais da destruição da família conjugal escrava).


Se Mattoso ainda não questionava a base empírica da visão “tradicional” da família cativa, ela já percebia que os africanos e seus descendentes podiam construir outras solidariedades significativas, para além do parentesco, para orientar suas vidas. Os estudos subseqüentes, contudo, mudaram drasticamente o quadro empírico referente à família escrava. Os trabalhos demográficos têm focalizado especialmente o Oeste paulista no século XIX – exatamente a região das plantations ( o “hinterland” da cidade de São Paulo) que era o ponto de referência de Florestan Fernandes. Esses estudos mostram uma altíssima razão de masculinidade entre os escravos ao longo do século, junto com altas taxas de casamento formal, feito na Igreja, entre homens e mulheres, em propriedades com 10 ou mais cativos (nas quais estava a maioria dos escravos). Indicam também, para essas propriedades, uma estabilidade impressionante (no contexto da historiografia sobre o assunto) nas famílias conjugais constituídas (isto é, entre cônjuges e na convivência entre pais e filhos menores de 10 anos). Em suma, nas propriedades maiores, a experiência de viver numa família conjugal estável era a norma para a grande maioria de mulheres e crianças escravas. Além disso, em propriedades “maduras”, com muitos anos de funcionamento, essa estabilidade se traduzia na existência de muitas famílias extensas, contando com a presença de três gerações e a convivência entre irmãos adultos e seus respectivos filhos. Se o tráfico africano e interno despejava sempre mais “estrangeiros”(principalmente homens) nas fazendas da região, não é verdade que a maioria dos cativos – muito menos a maioria das mulheres e das crianças – estivessem “perdidos uns para os outros”, vivendo
condições de anomia. Portanto, as conclusões de Fernandes e Bastide a respeito do processo de aculturação dos escravos, de sua incapacidade “política”, e das causas de sua falta de mobilidade social após a abolição são improcedentes.


O quadro demográfico para o Oeste paulista parece ser válido para a outra região principal de grande lavoura do Sudeste, o Vale do Paraíba (paulista e fluminense), incluindo-se a região de Campos. Os trabalhos de Manolo Florentino, José Robert Góes, Hebe Maria Mattos e Sheila de Castro Faria sugerem isto. Além disso, num estudo no prelo, mostro que as taxas de casamento formal entre escravos nesta região eram semelhantes às do Oeste paulista no final do século XVIII e início do XIX. Começam, contudo, a cair antes de 1850 e despencam drasticamente após 1860 (refletindo, talvez, o impacto da Guerra Civil norteamericana sobre as expectativas dos senhores no que diz respeito ao futuro da escravidão). Por razões ainda não bem conhecidas, a taxa permanece alta no Oeste paulista até os anos 1880; e cai mais acentuadamente entre 1872 e 1886 na medida em que o observador se afasta dessa região, descendo o Vale do Paraíba. Acredito que a explicação tem a ver, não com o “lar” escravo, mas com diferenças no “controlar” branco: no Oeste paulista, os senhores encaravam o casamento formal escravo não apenas como uma instituição que contribuía para a reprodução, mas também como um elemento simbólico essencial para seu domínio. Em suma, os resultados das pesquisas sobre o Oeste paulista seriam não apenas típicos mas paradigmáticos, no que diz respeito à família escrava nas regiões de grande lavoura do Sudeste. Naquela parte de São Paulo, os dados sobre casamentos formais incluem praticamente a totalidade dos casamentos consensuais – e, portanto, captam a realidade social – o que cada vez mais não é o caso no Vale do Paraíba, especialmente até 1860.


O quadro para o Oeste paulista e para o Vale do Paraíba seria válido para outras regiões
de grande lavoura no Brasil? É importante lembrar que as regiões de açúcar e café no sudeste eram regiões em expansão econômica e importadoras de escravos ao longo do século XIX. As regiões de açúcar no Nordeste, no período pós-1850, ao que parece não tinham o mesmo vigor econômico – embora possam não ter exportado escravos para o Sudeste no ritmo indicado pela historiografia tradicional. (Na minha tese de doutorado, apresento dados indicando que os escravos nordestinos importados pelo Sudeste vinham, desproporcionalmente, de pequenas propriedades e de áreas não açucareiras.) Estas considerações são importantes, no contexto dos estudos recentes sobre a família escrava nos Estados Unidos. Em Louisiana, estado importador de escravos no tráfico interno, a
vivência em famílias conjugais e extensas era a norma entre os escravos das p l a n t a t i o n s .

Em contraste, nas grandes propriedades de Virgínia, região exportadora, a família conjugal e especialmente a parentela extensa estavam menos presentes, devido ao impacto do tráfico. Estudos futuros no Brasil podem chegar a resultados semelhantes, com Bahia e Pernambuco, por exemplo, se parecendo mais com a Virgínia, e São Paulo e Rio com a Louisiana. Mesmo assim, acredito que ninguém vai poder “ressuscitar” o argumento de Bastide e Fernandes, para aplicá-lo ao Nordeste.


O estudo sobre a Virgínia, por exemplo, não conclui que os escravos eram anômicos, mas – um pouco como Kátia Mattoso – identifica outras estratégias suas para criar uma comunidade, enfatizando a importância de parentes na substituição de pais e, inclusive, de não-parentes no preenchimento de papeis vazios na família extensa.


Quais as implicações dos novos estudos sobre a família cativa, no que diz respeito ao nosso entendimento, primeiro, do “sistema escravista”, e segundo, do processo de formação da cultura e da identidade escravas? Florestan Fernandes argumentava que a destruição da família escrava era essencial para a manutenção do escravismo. Criando escravos anômicos, sem capacidade política conseqüente, é que os senhores podiam viver sossegados. Recentemente, Florentino e Góes têm posto este argumento de cabeça para baixo. Era só criando escravos com compromissos entre si que os senhores podiam garantir a “paz” nas senzalas. Nos estudos destes autores, a existência da família escrava é considerada, explicitamente, como uma condição estrutural para a continuidade do escravismo. Embora admire muito seu trabalho, não concordo com este argumento – a não ser para reconhecer que, em todas as sociedades, quem está com mais de 30 anos e com compromissos familiares dificilmente se tornará revolucionário. A família certamente tornava o escravo um refém de seu senhor e também de seus próprios projetos de vida. Ao mesmo tempo, acredito que Gutman e Genovese (e inclusive Fernandes e Bastide) tinham razão: a família, l a t o s e n s o, é uma instituição importante para a formação da cultura, da personalidade e da identidade, mesmo que a família conjugal não tenha o peso exagerado que lhe fora atribuído por Parsons e Bates. Enfim, que paz pode reinar numa senzala habitada por parentelas, cujos membros têm experiências, alianças e memórias radicalmente diferentes das de seus senhores?

Dito de outra forma: que “estrutura” é essa que, atrás de uma fachada de paz, alimenta a guerra entre a senzala e a casa grande? Outro argumento, com o qual simpatizo bastante, mas não totalmente, é o de Hebe Maria Mattos. Para esta autora, em decorrência de peculiaridades do sistema escravista brasileiro, os cativos no Sudeste, antes de 1850, não construíam sua identidade como uma identidade “negra e escrava” (contra uma identidade branca e livre), como acontecia nos Estados Unidos. Como resultado, a “família”, de importância fundamental para os projetos dos escravos brasileiros, também não contribuiu para esse tipo de identidade, servindo mais para aproximar os cativos dos homens livres pobres. É necessário lembrar, contudo, que ao mesmo tempo em que o processo de criação de identidade descrito por Hebe Mattos estava acontecendo (principalmente entre os escravos crioulos), existia outro processo paralelo, também no Sudeste, que transformava pessoas de diferentes etnias banto em “africanos”: e isto, num período em que já predominavam as plantations .

(Diferentemente de Hebe Mattos, vejo muito mais continuidade no Oeste paulista e no Vale do Paraíba antes e depois de 1850, no que diz respeito às relações entre senhores e escravos.) Exatamente quais os papéis da família na formação da(s) identidade(s) escrava(s) nesse contexto complexo ainda não está claro; contudo, acredito que Hebe está correta quando argumenta que não serão os mesmos que nos Estados Unidos. O coordenador da mesa sugere que ainda existe um impasse historiográfico entre certos testemunhos do passado e os novos estudos demográficos. Em outra ocasião, sugeri uma explicação para esse “impasse”: os “ olhares brancos” dos viajantes e dos brasileiros e portugueses bem nascidos que escreveram sobre o assunto simplesmente não perceberam os “lares negros”, devido a seus preconceitos raciais, culturais e ideológicos. Aqui quero indicar outra explicação, complementar: o fato de que os dois grupos mencionados tiveram mais contato com os escravos do meio urbano do que com os do campo. Nas cidades, prevaleciam de fato propriedades pequenas (e provavelmente pouco estáveis) e os índices de casamento formal eram extremamente baixos. Além disto, havia fatores específicos, não presentes nos meios rurais, que especialmente dificultavam a formação de uniões estáveis e mesmo de uniões consensuais: por exemplo, as grandes escravarias urbanas eram freqüentemente compostas por cativos destinados a serem alugados – e, portanto (se “casados”), a viverem a maior parte do tempo separados. Enfim, voltando ao ponto de partida desta discussão, Katia Mattoso, no essencial, não estava errada: apenas projetava para todo o Brasil suas conclusões sobre Salvador, área principal de sua pesquisa de arquivo. Lá, como na cidade do Rio de Janeiro e outras, as condições de existência da família escrava eram, talvez, especialmente precárias.


Sheila de Castro Faria


A partir dos anos 90, diversos pesquisadores, muitos por influência direta ou indireta do
contato com os trabalhos de Robert Slenes, vêm-se dedicando a demonstrar que a família escrava era uma forma comum da organização comunitária cativa. Constatar a existência da família escrava é, atualmente, redundante. Vários estudiosos tentam, agora, ir além na interpretação dos dados empíricos, questionando-se sobre seus mecanismos de viabilização, em que a observação de costumes africanos, o parentesco e a linhagem aparecem como objetos privilegiados. Nessa linha de investigação estão os trabalhos de Manolo Florentino e José Roberto Góes, que provocam grandes debates entre os que hoje se dedicam a estudar a família escrava.


Várias dissertações de mestrado e teses de doutoramento foram escritas sobre a família escrava, destacando-se:

José Flávio Motta, Corpos escravos, vontades livres. Estrutura de posse de cativos e família escrava em um núcleo cafeeiro (Bananal, 1801-1829) , tese apresentada ao Departamento de Economia da Universidade de São
Paulo, 1990;

Ana Lugão Rios, Família e transição. Famílias negras em Paraíba do Sul, 1872-1920, dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1990;

José Roberto Pinto de Góes, Escravos da paciência: um estudo sobre a obediência escrava no Rio de Janeiro (1790-1850) , tese apresentada ao Programa de Pós -Graduação da Universidade Federal Fluminense, Niterói, 1998; _____,

O cativeiro imperfeito. Um estudo sobre a escravidão no Rio de Janeiro da primeira metade do século XIX,

Vitória, Lineart, 1993 (originalmente dissertação de mestrado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal Fluminense).

Manolo Garcia Florentino, Em costas negras: uma história do tráfico atlântico de escravos entre a África e o Rio de Janeiro. Séculos XVIII e XIX, Rio de Janeiro, Arquivo Nacional, 1995 (reeditado pela Companhia das 5). Justamente por irem além da constatação da existência da família escrava, os autores apresentam dados que apontam para uma relação direta entre desembarques de africanos e mercado matrimonial cativo, no Rio de Janeiro (o período de estudo foi o final do século XVIII e primeira metade do XIX). Oscilava-se entre maior ou menor endogamia e maior ou menor diferença de idade entre os cônjuges.

Foi justamente em torno da diferença de idade entre os cônjuges que se centraram interesses e discussões na sessão “Família escrava e trabalho”, com ampla participação da platéia.

Florentino e Góes afirmam que o mercado de mulheres aptas à procriação era controlado por homens maduros ou idosos. Cativos jovens estavam permanentemente excluídos do acesso a elas, mas poderiam ficar com mulheres maduras, já estéreis. As curvas das idades de casamento apontam para o fato de que mulheres africanas acima de 45 anos eram, em média, mais de 20 anos mais velhas que seus jovens parceiros (de idade entre 15 e 25 anos); já entre os escravos mais velhos, a diferença se invertia: quanto mais velho o escravo, mais jovens eram suas esposas.

Os autores argumentam que esse padrão mudava na dependência da maior ou menor entrada de africanos, principalmente opondo crioulos a africanos, mas o dado básico era que os homens, fossem nascidos no Brasil ou na África, regulavam a distribuição de mulheres, resultado que indica regras culturalmente aceitas de uniões conjugais. Elas não se davam ao acaso. Mais do que isto, o desequilíbrio demográfico, oriundo do comércio atlântico, que permitia um número reduzido de mulheres em relação aos homens, não fazia com que elas fossem privilegiadas na escolha de parceiros – não seria um problema matemático, mas cultural.


Em seus trabalhos, por diversas vezes Robert Slenes aludiu à maior facilidade de se encontrar mulheres casadas ou viúvas do que homens nas mesmas condições. O acesso à formação de família, é evidente, era mais fácil para elas. Agora, quem escolhia os parceiros era questão ainda não analisada. Dessa forma, Slenes argumentou, durante os debates, que a interpretação sobre a clara tendência de diferenças extremas entre as idades dos cativos casados poderia ser outra. Escravos mais velhos, fossem homens ou mulheres, tinham mais condições de possuir pecúlio do que os mais jovens, traduzido talvez em dinheiro acumulado, moradia própria, roças etc. Seriam, portanto, as jovens a escolher parceiros que lhes permitissem melhores condições de vida? Quem sabe, até, de liberdade? Os ganhos poderiam ser grandes. Por que seriam só os homens mais velhos os controladores do mercado matrimonial, se si constatou que também as mulheres mais velhas tinham parceiro muito jovens? Será que só a procriação responderia por esse predomínio masculino, em que homens velhos queriam procriar e aos jovens só “restavam” mulheres já fora da capacidade de gestação? Também nesse caso, seria somente uma “questão matemática” e, não, cultural.


Torna-se muito difícil, somente com números, criar explicações convincentes. Se em diversas culturas africanas, como afirmam Florentino e Góes, o mercado matrimonial era controlado por homens idosos que reservavam para si esposas em idade fértil, pode ser que no Brasil, enquanto escravos, tendessem a repetir o mesmo padrão. O interessante, no entanto, é que, entre os livres, havia tendência semelhante. As diferenças de idade de casais de um mapeamento populacional da Vila de Areias, de 1817, entre os designados pela cor/condição, pardos e pretos, demonstram que os resultados são muito parecidos aos encontrados para a população escrava: 14% das mulheres são mais velhas que seus parceiros, em média de 5,3 anos e os homens eram mais velhos numa média de 11,1 anos, alguns com diferenças de até 33 anos. Estes eram pardos e negros, o que poderia significar que tinham uma herança africana. O mais surpreendente, no entanto, é que, entre os casais tidos como brancos, os números são assustadoramente semelhantes: 15% das mulheres eram mais velhas que seus maridos, numa média de 5,6 anos, algumas com até 17 anos de diferença. Os homens eram mais velhos numa média de 12,4 anos, alguns com 32 anos a mais.


Caso este padrão tenha-se originado da cultura africana, com os velhos dominando o mercado matrimonial, aparece, então, um fenômeno interessantíssimo na nossa Sociedade escravista: os homens e mulheres brancos incorporaram costumes africanos nos seus arranjos matrimoniais. Seria uma evidente circularidade cultural. Logicamente, não deve ter sido este o caso. Os debates em torno das explicações para as diferenças etárias entre cônjuges escravos não se resolveram, demonstrando o quanto é interessante a multiplicação de estudos que vão além da simples constatação da família escrava. Condições específicas do Brasil escravista, ainda não exploradas, devem ser pesquisadas para entendermos o quanto as heranças culturais e condições materiais de vida podem, respectivamente, explicar a formação e os interesses na organização familiar dos cativos.


É necessário frisar que os estudos sobre a família escrava centram-se no século XIX e no Sudeste. Estudos sobre períodos anteriores existem, mas são poucos. Mesmo considerando que o Sudeste era, no século XIX, o eixo da economia do Brasil imperial, ficam faltando estudos que dêem conta de Províncias como Bahia e Pernambuco, onde o açúcar, apesar de desbancado pelo café vale-paraibano, no decorrer deste século, mantinha sua importância como gerenciador da oferta de escravos para outras paragens.

O rompimento de laços familiares escravos, nesse contexto, precisa ser melhor estudado. Em relação a áreas que não eram significativas em termos econômicos, o silêncio historiográfico é ainda maior, para qualquer parte do Brasil. Desconhecemos, portanto, a organização familiar de locais parcialmente tocados pelo tráfico africano e cuja produção se destinava ao mercado interno. Para os séculos anteriores ao XIX, no relativo ao Nordeste só conheço os trabalhos de Stuart Schwartz e Stephen Gudeman; e foi com o objetivo de entender os motivos das diferenças encontradas por estes trabalhos, da Bahia, e o meu, do Norte Fluminense (açucareiro e exportador, como a Bahia), no século XVIII, que fiz a exposição sobre o acesso de escravos ao casamento católico.

Tanto para o século XVIII quanto para o XIX, a Bahia apresentou sempre uma altíssima
taxa de ilegitimidade entre os escravos batizados, o que demonstra claramente a ausência de casamentos legais entre os escravos, com algumas paróquias não chegando nem mesmo a registrar sequer um filho legítimo. Já para as freguesia de Campos dos Goitacases, no século XVIII, havia taxas altíssimas de legitimidade entre crianças cativas, sendo quase a metade dos batizandos filhos de pais casados na igreja, com algumas freguesias chegando a registrar 86% de crianças legítimas.

Dados de freguesias da cidade do Rio de Janeiro apontam na mesma direção: quase a metade de crianças batizadas eram filhas de pais casados. Na esmagadora maioria das vezes, os casais eram de um mesmo dono, situação facilitada para lugares com grandes escravarias, como era o caso do Recôncavo baiano no século XVIII. Por que, então, a Bahia mostrava tão poucos filhos legítimos, se tinha condições similares a outras áreas de grande produção para o exterior? A Bahia teria alguma coisa de diferente em relação a outras áreas, com certeza; a qual, porém, no momento só pode ser considerada como uma hipótese.

João José Reis tem-nos brindado sistematicamente com informações sobre as revoltas de escravos ocorridas em Salvador, acirradas na primeira metade do século XIX. Pouco ou quase nada se sabe sobre revoltas similares ou de mesma magnitude para outras áreas escravistas do Brasil. Há anos que estudiosos vêm tentando demonstrar que a composição étnica da população escrava da Bahia – com origem na África ocidental, que, apesar de origens diversas, são genericamente indicados como “nagôs” – talvez tenha alguma coisa a ver com isso.


O Sudeste, composto basicamente por população escrava de origem banto, à qual se atribui um “acomodamento” cultural (que pode ser discutido, mas não descartado) maior do que o dos nagôs, segundo várias abordagens, não estaria mais predisposto a aceitar as regras do catolicismo? Pensando em relação à formação de famílias segundo as normas católicas, não estariam aí, nas diferentes origens étnicas da escravaria, as bases de uma maior resistência da população escrava da Bahia em procurar ou exercitar as práticas católicas? Um povo como o que foi para a Bahia, que tem recorrentemente a renovação de sua herança africana com a entrada maciça de novos “estrangeiros” em seu meio e que organiza tantas revoltas, casar-se-ia segundo os moldes católicos?


Está mais do que evidente, por tudo que foi apresentado, que é necessário levar em conta as expectativas, as “esperanças e as recordações” (parafraseando Robert Slenes) dos escravos em suas estratégias de vida, para tentarmos entender as formas com que as organizações familiares se apresentaram nas diversas regiões e nos diversos tempos do Brasil escravista. O principal balanço que se pode fazer com base nos trabalhos e debates apresentados é o de que se torna urgente explorar a história dos povos africanos, origem sem dúvida das variações encontradas nas diversas comunidades escravas do Brasil e que, ainda hoje, aparecem em traços culturais fortes de cidades e estados que tiveram sua presença marcante e duradoura. De novo citando Robert Slenes, é preciso considerar que (...) se os escravos não eram seres anômicos, triturados até a alma pelo engenho do cativeiro, se eles tinham herança cultural própria e bastante autônoma e instituições, mesmo que imperfeitas, para a transmissão e recriação dessa herança, então o fato de que eles provinham de etnias africanas específicas – e não eram, digamos, noruegueses – torna-se importante. Torna-se, na verdade, fundamental.

João José Reis, Rebelião escrava no Brasil. A história do levante dos malês (1835) , 2
ed., São Paulo, Brasiliense, 1987; _____,

Eduardo Silva, Negociação e conflito. A resistência negra no Brasil escravista., São
Paulo, Companhia das Letras, 1989. Título do trabalho de Robert Slenes, Na Senzala uma flor. As esperanças e as recordações na formacção da família escrava, op. cit.
Idem, p. 4. Letras, São Paulo, 1997); _____;


José Roberto Góes, A paz das senzalas. Famílias escravas e tráfico atlântico, Rio
de Janeiro, c. 1790 – c. 1850, Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1997.6


Alida C. Metcalf, “A família escrava no Brasil Colonial: um estudo de caso em São Paulo”, História e População. Estudos sobre a América Latina. São Paulo, Abep, 1990; ______,

Families of planters, peasants and slaves: strategies for survival in Santana de Parnaiba, Brazil, 1720-1 8 2 0, Texas, University Microfilms International, 1983;

Stuart Schwartz; Robert Slenes; Iraci Del Nero da Costa, “A Família Escrava em
Lorena (1801)”, Revista de Estudos Econômicos, Número 17 (2), São Paulo, IPE/USP, 1987;

Maria Luiza Marcílio, A c idade de São Paulo. Povoamento e população 1750-1850, São Paulo, Pioneira-Editora da Universidade de São Paulo, 1973;

Horacio Gutiérrez, “Crioulos e africanos no Paraná, 1798-1830”, Escravidão, Revista Brasileira de História, vol. 8, Número16, São Paulo, ANPUH/Marco Zero, 1988; Sheila de Castro Faria, A colônia em movimento. Fortuna e família no cotidiano colonial, Rio de Janeiro, Nova Fronteira, 1998.

Para a Bahia, no século XIX, registro o trabalho de Kátia de Queirós Mattoso, Família e sociedade na Bahia do século XIX, São Paulo, Corrupio, 1988. Desconheço outros.

Stephen Gudeman; Stuart B. Schwartz, "Purgando o Pecado Original: Compadrio e Batismo de Escravos na Bahia no século XVIII", in: João José Reis (org.), Escravidão e invenção da liberdade. Estudos sobre o negro no Brasil, São Paulo, Brasiliense, 1988;

Stuart Schwartz, Segredos internos. Engenhos e escravos na sociedade colonial, trad. de Laura Teixeira Motta, São Paulo, Companhia das Letras, 1988.7

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