quinta-feira, 13 de março de 2014

HISTÓRIAS E LENDAS DE SÃO VICENTE



Fortificações reais e imaginárias (1)
J. Muniz Jr. (*)
Nas documentações históricas, sobre a defesa militar da Capitania e fortificações marítimas da Praça de Santos, constam citações sobre outros fortes, reais e imaginários, tais como o Forte de São João, que teria existido na Ilha do Carvalho - que no parecer do historiador Alberto Sousa (1), seria a atual ilha Barnabé, onde, segundo observa, nunca sequer foi iniciado, e que teria sido ele imaginário.
Embora o historiador Washington Luís descreva (2) que, em todo o tempo em que permaneceu em São Vicente, o fidalgo Martim Afonso de Sousa não fez nenhuma fortificação para a defesa das terras, Benedito Calixto (3) pondera que o donatário, pensando na defesa da sede, da colônia, além de rude torre de defesa, tratou de fortificar e guarnecer "não só a vila de São Vicente", como também a povoação de Itanhaém. E que as circunstâncias obrigaram-no a levantar baluarte de defesa no Porto das Naus, em frente ao porto de Tumiaru, artilhar a "muralha natural" da boca da Barra de S. Vicente, em frente à primitiva vila e Ilha do Sol...".
O historiador J.F. de Almeida Prado (4) também faz referência à fortaleza de Tumiaru, "onde se ergueria a futura Ribeira das Naus".
Cumpre-nos lembrar que a aludida ilha, chamada pelo citado historiador de "Ilha do Sol" não é a ilha de Santo Amaro, que teve tal denominação nos tempos coloniais. No caso, a citação é para a antiga Ilha do Mudo, conhecida atualmente como Ilha Porchat.


HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Hipupiára: uma lenda no original
Veja também a versão da lenda comentada por Francisco Martins dos Santos e as informações complementares de J. Muniz Jr.
Uma das mais tradicionais lendas de São Vicente é a do monstro marinho Hipupiára (aparentemente um leão marinho) e ao contrário das lendas comuns, tem até data de surgimento (1564) e registro contemporâneo, pois mereceu do historiador Pero de Magalhães Gândavo as páginas 62 a 66 de sua História da Província de Sãcta Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil. "Impresso em Lisboa na officina de Antonio Gonsalues" em 1576, o livro é raríssimo, pois teve circulação limitada em função das revelações que continha sobre a economia colonial, os costumes indígenas e a história natural da então colônia, que a Coroa portuguesa não desejava divulgar devido à concorrência comercial e política. Um dos dois únicos exemplares conhecidos da obra é conservado na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro:




A lenda do Hipupiara
Naquele tempo, embora São Vicente fosse a sede ou cabeça da Capitania do mesmo nome, os capitães-mores ou governadores já residiam em Santos, de onde dirigiam a terra e o povo de sua jurisdição, e isso desde que Brás Cubas o fizera, em seu segundo governo de 1552.
Entretanto, costumavam os capitães-mores manter na Vila Capital, para atendimentos de rotina e articulações necessárias, um capitão de sua confiança, por vezes causando complicações que obrigavam o substituto a ir a Santos, por terra, pelo Caminho de São Jorge, que era o mais curto, ou por água em circuito, seguindo pelo braço do Iriripiranga (atual Casqueiro).
Era o que acontecia em 1564, quando governava a capitania o capitão-mor Pedro Ferras Barreto, que tinha sede e residência na mesma casa do Conselho ou Senado da Câmara, em Santos, enquanto fazia suas vezes na Vila de São Vicente o capitão jovem e impetuoso Baltazar Ferreira, filho do nobre Jorge Ferreira, que já fora capitão-mor e ainda o seria, pela segunda vez, pouco tempo depois.
Baltazar - desde que seu irmão Jerônimo fora aprisionado e comido pelos rudes tamoios de Maenbipa e Ubatuba, num ataque à Bertioga, ocasião em que ele escapara do mesmo fim pelo heroísmo dos irmãos Braga, e tendo em vista a sua belicosidade quase irresponsável - fora afastado por seu pai, indo residir em São Vicente, fora das lutas permanentes que o porto grande representava, de ataque ou defesa. Residia o capitão Baltazar na Casa de Pedra, misto de sede de Governo, fortaleza e cadeia pública onde o donatário Martim Afonso despachara e residira, de janeiro de 1532 até maio do ano seguinte. Tinha ele uma índia escrava, que pertencia a seu pai mas estava também na Casa de Pedra, por ser pessoa de extrema confiança. Chamava-se Irecê e o servia em todos os setores domésticos.
Apesar da confiança que merecia, Irecê, por ser escrava e por gostar de um escravo, que trabalhava numa fazenda do continente fronteiro, e era índio como ela, praticava fugas noturnas, para encontrar-se com seu Andirá, bem avançada a noite, na Praia da Vila, a salvo dos olhos mexeriqueiros.
Apenas uma índia velha, tida como feiticeira, que vivia ali perto, no morro vizinho, sabia das suas andanças noturnas e dos encontros com Andirá, e foi ela que um dia lhe fez ver que o capitão Baltazar era um moço bom, amigo dos índios, e não ia gostar de saber que ela se encontrava com Andirá na calada da noite e que tinha na cabeça a idéia de fugir com ele para as bandas do Sul. Irecê ficara muito espantada com as palavras da feiticeira, pois não contara a ninguém aquele segredo alimentado em seu íntimo...
A índia velha lhe dissera que era melhor contar o seu caso ao capitão, pedindo que a ajudasse, que lhe permitisse casar com o seu Andirá. O capitão Baltazar poderia até dar um jeito... Completando o conselho, a índia velha terminava com um aviso:
- Irecê... os espíritos do mar não gostam disso, não... e, de repente, podem mandar um castigo pr'a você!
Assim, naquela noite, foi com muito medo que Irecê realizara mais uma das suas fugas noturnas, para o encontro na beira do mar, parecendo-lhe ver a figura da velha espiando ou um vigilante escondido para prendê-la. Estava resolvida a contar a Andirá o sucedido e ver o que ele decidia.
A noite estava muito quieta, e um vento brando e morno vinha de longe, da Ponta da Capetuba. A baía estava mansa como nunca e o céu muito claro. A vila inteira dormia, encarapitada no pequeno outeiro. Irecê já estava na praia e viu à beira d'água a canoa em que Andirá sempre vinha, mas Andirá mesmo, não estava.
A índia emitiu um piado de pássaro noturno, comum entre eles, mas não teve resposta. Era estranho, muito estranho. Já ia voltar, cheia de pressentimentos, lembrando-se das palavras da índia velha, e caminhava em direção ao campo de Jundú, que mediava entre a praia e o outeirinho da Vila, quando ouviu dois urros pavorosos, como de jaguar ferido, e viu em seguida, mal divisado na sombra do próprio jundú, um vulto enorme, gigantesco, que caminhava esquisitamente, os braços abertos, uma cabeça comprida e desmedida, com uma altura de quase três metros. Parecia-lhe um "curupira", um fantasma do mar ou das florestas. Parecia tudo menos gente, pelo tamanho e pelos gritos de animal que dava. Decerto era mesmo o demônio e era o castigo lembrado pela feiticeira...
Irecê, toda em tremores, correu como pôde para a Casa de Pedra. Foi bater à porta do capitão, embora sabendo que ele dormia. Chorava e gemia alto, para que ele ouvisse, vencendo o medo de um tal ato. Baltazar Ferreira perguntou-lhe o que queria e não deu importância ao que ela contava apavorada. Gritou por detrás da porta que não fizesse muito barulho, que fosse ver outra vez, e ver bem, para que ele não se levantasse à toa e não fosse de espada ao encontro de uma invenção. Ai dela se isso acontecesse.
Irecê ficou desesperada e, só então, viu que o capitão não estranhava porque estaria ela acordada e na praia àquela hora... Tornou a correr ao jundú, mas, por outro lado, saindo pela porta da torre de vigia, na base do outeirinho. Correu como podia ao jundú; de uma certa distância, viu o fantasma no mesmo ponto e voltou ainda mais depressa, chamando seu senhor, afirmando em voz lamentosa junto à sua porta, que era bicho horrível e gigantesco. O bicho decerto queria sangue, e ameaçava toda a vila!... Irecê pedia ao capitão que corresse enquanto era tempo... talvez fosse o demônio... e seria bom chamar os padres do Colégio para esconjurá-lo!...
Irecê perdera o controle de si mesma, desatinava, e Baltazar Ferreira não tivera outro remédio. Saiu quase como estava, metendo o gibão de qualquer jeito e tomando da espada, que ficava sempre ao alcance de seu braço. A índia caminhou logo atrás dele.
Quando iam atravessando o grande campo de jundú, ouviram-se novos urros e gritos roucos da aparição, e logo Batazar Ferreira viu, à pequena distância, o monstro que Irecê descrevera.
- Tu tens razão - disse ele -, é mesmo coisa grande e feia!... Mas vou ver de perto!...
O bicho monstruoso, parecendo adivinhar a intenção de Baltazar, pôs-se a caminhar, gingando como um bêbado em direção da praia. Com grande resolução, o filho de George [sic: correto é Jorge] Ferreira, que enfrentara a fúria dos tupinambás na Bertioga ao lado dos Bragas e de seu irmão, embora não pudesse ainda dizer que monstro seria aquele e sem acreditar muito em demônios e aparições, correu para cercar o estranho animal - que devia ser um gigante marinho, capaz de caminhar como se estivesse em pé. Desembainhando a espada de guerra, do mais puro aço de Toledo, pôs-se à frente do animal, que parecia, pelo tamanho e pela grossura, um elefante em forma quase humana, tendo os pés como se fossem barbatanas.
Baltazar Ferreira raciocinou depressa. Já tinha ouvido falar de tais monstros, não no Brasil, mas na Europa, nas terras frias do Norte. Nunca os vira, pois nascera em Santos, e menos ainda em pé, naquela postura ameaçadora, como ele estava agora, roncando e dando uivos pavorosos. Segurou com força o copo da pesada espada e deu tremenda estocada à altura do ventre do bicharoco, atravessando-lhe o corpanzil. O animal fez um movimento furioso com os braços e tombou sobre o capitão vicentino, urrando com mais força e esguichando sangue.
Rápido e calmo, Baltazar, sem nada ver, pela sangueira quente e grossa que lhe emprestara os cabelos e descia sobre todo o rosto, saltou para o lado, deixando que o bicho se estatelasse na areia.
Com os gritos de Irecê, que temia pela sorte do amo, já chegavam guardas da Casa de Pedra, escravos da vizinhança e alguns índios da base do morro. Naquele mesmo instante, corria o jovem capitão o maior perigo do seu estranho combate. O Hipupiara - que era o nome do monstro marinho, segundo disseram depois os índios, cujo significado era "demônio da água" - recobrara um pouco de energia e, num último arranco, escancarando a bocarra, entre urros, precipitava-se sobre ele, de surpresa. Baltazar só teve tempo de recuar, metendo-lhe um golpe sobre a cabeça, mais como defesa, vendo-o então arrastar-se pesadamente, como se quisesse fugir para dentro do mar.
Com a chegada daquele verdadeiro socorro de homens armados, a cena terminou. Vários daqueles homens foram alcançar o monstruoso animal já nas primeiras maretas, retirando-o das águas como em agonia.
O Hipupiara foi arrastado para a Vila, segundo disseram, e ali ficou exposto até o fim daquele dia, ao que consta para evitar crendices e superstições exageradas entre o povo.
Conforme o relato de um dos cronistas da época, Baltazar Ferreira "saíra todavia desta batalha tão sem alento, com a visão deste medonho animal ficara tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai, que era o que lhe havia acontecido, não lhe pôde responder, e assim como assombrado, sem falar coisa alguma por um grande espaço".
Perdurou por muito tempo, em São Vicente, em Santos e por todo o litoral, a lembrança, mista de horror, do fantástico Hipupiara. Estrangeiros de vários países exploraram, mais do que os brasileiros, a história do fabuloso animal aparecido naquele ano de 1564. Ninguém contudo se lembrou de perguntar ou comentar a primeira parte do pequeno drama. Ninguém falou da única vítima presumível do monstro vicentino, daquele pobre Andirá, que fora causa das fugas noturnas de Irecê, e que nunca mais apareceu, deixando como lembrança, entre o mistério e o silêncio, aquele vestígio material, a sua pequena canoa e seus pertences, à beira do mar.
Em verdade, ninguém procurou saber se ele morrera - e se fora, como parecia, o primeiro e único tributo pago pela Vila ao Hipupiara. Somente Irecê, a índia de Baltazar Ferreira, a pobre heroína ocasional daqueles registros aparentemente lendários, considerou real e chorou a morte assombrada... do seu herói e quase raptor.



Monstro marinho surgiu em São Vicente em 1564
J. Muniz Jr. (*)
Colaborador
Vem de longínquas eras a crença na existência de seres estranhos e ferozes, espantosos ou maléficos que povoaram a Terra. As lendas e mitos engendrados pela criatividade imaginativa do ser humano nos legaram aspectos lendários e míticos, através de narrativas das mais absurdas e fantásticas.
De fato, desde os tempos mais remotos, predominavam incríveis relatos a respeito de criaturas quiméricas que se deslocavam pela vastidão dos oceanos, atemorizando os homens do mar. Tais narrativas falavam de tritões, sereias, serpentes marinhas e outras figuras horrendas que povoavam os mares intermináveis.
Em 1560, um padre que estava na Ilha de Manar, distante 200 léguas (aproximadamente 1.200 quilômetros de Goa), foi chamado às pressas por um grupo de pescadores para ver alguns tritões e sereias que estavam presos nas redes da embarcação. Atendendo ao chamado, o religioso pôde verificar as estranhas criaturas, que tinham uma certa semelhança com os seres humanos, ostentando forma de peixe (cauda) da cintura para baixo.
Um relato do livro Entretiens de Mer, editado em 1643, fala de um tritão ou homem marinho que apareceu na costa da Bretanha e, segundo pôde ser observado pelos pescadores, tinha os olhos sombrios e uma vasta cabeleira, que flutuava sobre as espáduas, além de uma barba que chegava até a altura da cintura. Ele rompeu a rede que foi atirada para capturá-lo, permanecendo com a parte inferior na água, batendo as mãos e fazendo um ruído estridente com a boca, até desaparecer sob o marulhar das ondas.
Na época dos descobrimentos, antigos relatos mitológicos ainda aguçavam a mente dos navegadores e aventureiros que ousaram singrar os mares tenebrosos, sombrios e perigosos. Por aquele tempo, destemidas tripulações que guarneciam os barcos à vela cruzaram os oceanos em busca de terras incógnitas e misteriosas, sempre atentos, procurando avistar profundos abismos ou encontrar algum monstro marinho na superfície da água.
Quando os navegadores portugueses chegaram ao Brasil, corria a notícia de serpentes monstruosas e de tantas outras assombrosas aberrações. Tanto é que os indígenas tinham pavor da ipupiara, que, segundo a crença, era o "demônio das águas" e que, além de paralisá-los com o olhar profundo, cingia-os com um abraço moral, arrastando-os para o fundo do mar.
Na sua História da Província de Santa Cruz (Lisboa, 1575), o escritor Pero de Magalhães Gandavo conta que, no decorrer de 1564, apareceu um monstro marinho na Vila de São Vicente e que foi abatido a golpes de espada pelo capitão Baltazar Ferreira, lugar-tenente do capitão-mor Jorge Ferreira.
Segundo o relato, depois de morto, o "monstro" foi arrastado da praia para a praça da vila, onde ficou exposto diante da população estupefata, uma vez que tinha cerca de 15 palmos de comprimento e umas "serdas (pêlos) muy grandes", parecendo bigodes.
A luta entre a fantástica Hipupyara e o nobre capitão, reproduzida na obra de Gandavo, levou o historiador Benedito Calixto a tecer o seguinte comentário, publicado no Indicador Comercial Santista (1908): "Há, na verdade, um tanto de exagero e imperícia no desenho do monstro, que foi traçado por algum curioso, aqui em São Vicente, e corrigido pelo artista gravador em Lisboa, que humanizou a figura de Balthazar Ferreira e (o gravador) marcou, no fundo da gravura, com minúcias e nitidez, uma parte da Vila de São Vicente, com seus edifícios e templos, um tanto fantasiosos e arbitrários".
Para o naturalista Charles J. Cornish, o monstro marinho poderia ser um lamantino da América, conhecido como lobo ou leão-marinho, com as seguintes características: "Cauda arredondada, nadadeiras com unhas externas, duma independência e energia notáveis (...) O corpo semeado de pêlos curtos. Não tem sete vértebras cervicais, como todos os mamíferos, e sim, seis. A natureza da alimentação e a estrutura dos dentes indica que os serênicos têm o hábito de ruminar..."
Na época atual, os turistas e visitantes podem andar tranqüilamente em São Vicente sem receio de encontrar o decantado "demónio das águas". Isso, apesar de alguns pingüins, focas, leões e outros pequenos seres marinhos surgirem de vez em quando, trazidos pelas correntes marítimas e que, devido aos ferimentos ou exaustão, são acolhidos em terra.
O certo é que os forasteiros poderão desfrutar de um belo e aprazível recanto denominado Parque Ipupiara, que abrange, inclusive, a tradicional Praça da Biquinha.
(*) J. Muniz Jr. é jornalista, pesquisador de História, escritor e Amigo da Marinha (1983).



HISTÓRIAS E LENDAS DE S. VICENTE
Ilha do Mudo conta suas histórias (1)
Uma ilha que, para alguns, nem ilha é, e que já teve os nomes de Ilha das Cobras e Ilha das Cabras, entre outros: assim é a Ilha Porchat, que o pesquisador J. Muniz Jr. descreve neste artigo, publicado em 17 de setembro de 1995 no jornal santista A Tribuna:
A histórica e lendária Ilha Porchat
J. Muniz Jr. (*)
Colaborador
Considerada um dos mais belos recantos da paisagem vicentina e um dos redutos históricos mais antigos da orla da praia, a Ilha Porchat já era conhecida pelos navegantes e aventureiros que percorriam o litoral brasileiro, antes da chegada do capitão-mor Martim Afonso de Souza. Sabe-se que, em época longínqua, era dotada de uma tropical vegetação, verdadeira "ilha florestal" inexpugnável, cuja espessa mata escondia as sentinelas avançadas de olho na amplidão do oceano, tentando vislumbrar os barcos piratas que bordejavam a costa atlântica, pilhando e saqueando pelo fogo e pela espada.
Devido à sua posição estratégica à entrada da Baía de São Vicente, constituía-se num ponto de referência, num marco geográfico que identificava a entrada da vila fundada pelo donatário Martim Afonso, uma vez que, num lugar impreciso, foi fixado um padrão com as Armas de Portugal. Assim é que, no início da colonização, denominava-se Ilha do Mudde, deturpada com o correr do tempo para Ilha do Mudo. Na opinião abalizada do saudoso historiador Francisco Martins dos Santos, o vocábulo árabe "Mudd" significa "Modelo, exemplo, padrão, referência" e, aplicado à ilha, em sua forma nominativa "Muddu", queria dizer que era uma referência "para os que quisessem ir à Vila de São Vicente, por terra ou por mar".
Muita coisa já foi escrita a seu respeito, existindo versões históricas de que, em época remota, foi adquirida por um colono português sem o dom da palavra, motivo pelo qual passou a chamar-se Ilha do Mudo. Depois do nome primitivo, teve a alcunha de Ilha das Cobras, isso em fins do século XVIII, quando foi vendida a Luiz Antônio de Souza. Logo após a primeira década do século XIX, passou às mãos de outro lusitano, que iniciou a criação de caprinos em suas encostas, levando os habitantes de São Vicente a chamá-la de Ilha das Cabras.
Em meados do oitocentismo, foi negociada de um religioso para um dos membros da conceituada família Porchat, que lhe passou o sobrenome. Apesar de tornar-se propriedade do cidadão Manuel Augusto de Oliveira Alfaya, em 1887, a denominação de Ilha Porchat foi mantida. No início deste século [N.E.: século XX], provavelmente tenha pertencido ao comendador Manuel Alfaya Rodrigues. Finalmente, foi alienada ao senhor Francisco Fracaroli Sobrinho em 1937, por um dos herdeiros de Manuel Augusto.
Ilha Porchat, vista da Praia do Itararé, tendo ao fundo a Ponta do Itaipu, no início do século XX
Imagem reproduzida do jornal santista A Tribuna de 17/9/1995
A partir de 1870, começaram a chegar os primeiros ocupantes: pescadores, caiçaras, até escravos forros, que levantaram rústicas moradias no seu território, surgindo daí as primeiras construções. Devido ainda ao seu pitoresco visual, recebia as famílias e forasteiros que passeavam e se divertiam nos fins de semana e temporadas de verão, desfrutando do magnífico panorama avistado do seu topo, de onde se descortina um cenário imponente.
Cantada e decantada através dos tempos, além da sua curiosa história, a ilha é envolta por fascinantes lendas, focalizando-a em épocas distantes, quando tinha uma beleza selvagem e servia de refúgio de piratas que desembarcavam no seu solo com preciosas arcas carregadas de dobrões de ouro.
A lenda da Toca do Índio revela uma suposta abertura por dentre as rochas que recebem o impacto do mar, cujo acesso só é possível com a maré baixa, através de um túnel natural que desemboca numa ampla gruta, lembrando fabuloso esconderijo da romanesca Ilha de Monte Cristo.
Já se disse que é uma península e não uma ilha, pois somente ficava cercada de água por ocasião das grandes marés, quando o mar inundava parte da praia, isolando-a completamente, transformando-se assim numa península-ilha. Antes da construção da sólida ponte ali existente, os moradores e veranistas eram transportados por cadeirinhas de rodas puxadas por robustos carregadores que faziam ponto na praia.
Nos tempos românticos do jogo, quando os cassinos atraíam muita gente envolvida pela sedução das roletas e pelos suntuosos espetáculos artísticos, o Cassino de São Vicente, que existiu na subida (do lado da Praia do Itararé) foi ponto de encontro da alta sociedade. E para lá se dirigiam grandes personalidades da Baixada Santista e da Capital, dentre capitalistas, banqueiros, empresários, políticos, ricos negociantes, pessoas abastadas, turistas e até aventureiros trajados a rigor, inclusive formosas e sedutoras mulheres, elegantemente vestidas e ostentando valiosas jóias. Era uma fascinação!
O cassino da ilha encantada (denominação da época) promovia ainda matinês dançantes aos domingos, sob os acordes musicais de renomadas orquestras, magistrais shows a cargo de astros e estrelas de renome internacional. Além das diversões diuturnas, bares e restaurantes de alto nível, balneário com cabines para banhistas, destacavam-se igualmente retumbantes bailes carnavalescos no tríduo momesco, para a alegria dos animados foliões.
Todavia, logo após o término da II Guerra Mundial, a sua fase romântica chegou ao fim, com a proibição do jogo, que resultou no fechamento dos cassinos em todo o País. Foi então loteada e vendida a particulares, surgindo belas residências de veraneio e, posteriormente, os majestosos edifícios erguidos em seu contorno. E no lugar do antigo cassino foi erigida a bela sede do tradicional Ilha Porchat Clube, que, por sua vez, tornou-se um dos pontos de encontro da sociedade local em termos modernos.
No tocante à ilha, continua encantadora, com o seu vislumbrante visual, rochas e precipícios, alamedas, modernas construções e o verde-mar, sempre atraindo a atenção dos turistas, apesar dos problemas que a envolvem, com os constantes deslizamentos em suas encostas. Mesmo assim, não deve ser esquecida, pois, além dos seus atrativos turísticos, evoca páginas e páginas históricas e lendárias do passado vicentino.
Bibliografia:
Calixto, Benedito - Capitanias Paulistas, Estab. Gráf. J. Rossetti, São Paulo, 1924;
Luís, Washington - Na Capitania de S. Vicente, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1956;
Madre de Deus, Gaspar (Frei) - Memórias para a História da Capitania de São Vicente, Livraria Martins Editora, São Paulo, 1953;
Martins dos Santos, Francisco - A Ilha do Mudo, jornal A Tribuna, 18 de junho de 1953;
Muniz Jr., J. - Ilha Porchat: um marco histórico, jornal Cidade de Santos, 20 de janeiro de 1980.
(*) J. Muniz Jr. é jornalista, pesquisador de história e autor de várias obras literárias sobre a Baixada Santista, vencedor do Prêmio Clio de História, de 1983, da Academia Paulistana da História e Ordem Nacional dos Bandeirantes.

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