Fortificações
reais e imaginárias (1)
Nas
documentações históricas, sobre a defesa militar da Capitania e
fortificações marítimas da Praça de Santos, constam citações
sobre outros fortes, reais e imaginários, tais como o Forte de São
João, que teria existido na Ilha do Carvalho - que no parecer do
historiador Alberto Sousa (1),
seria a atual ilha
Barnabé,
onde, segundo observa, nunca sequer foi iniciado, e que teria sido
ele imaginário.
Embora o historiador Washington
Luís descreva (2)
que, em todo o tempo em que permaneceu em São Vicente, o fidalgo
Martim Afonso de Sousa não fez nenhuma fortificação para a defesa
das terras, Benedito
Calixto
(3)
pondera que o donatário, pensando na defesa da sede, da colônia,
além de rude torre de defesa, tratou de fortificar e guarnecer "não
só a vila de São Vicente", como também a povoação de
Itanhaém. E que as circunstâncias obrigaram-no a levantar baluarte
de defesa no Porto das Naus, em frente ao porto de Tumiaru, artilhar
a "muralha natural" da boca da Barra de S. Vicente, em
frente à primitiva vila e Ilha do Sol...".
O historiador J.F. de Almeida Prado
(4)
também faz referência à fortaleza de Tumiaru, "onde se
ergueria a futura Ribeira das Naus".
Cumpre-nos
lembrar que a aludida ilha, chamada pelo citado historiador de "Ilha
do Sol" não é a ilha de Santo Amaro, que teve tal denominação
nos tempos coloniais. No caso, a citação é para a antiga Ilha
do Mudo,
conhecida atualmente como Ilha Porchat.
HISTÓRIAS
E LENDAS DE S. VICENTE
Hipupiára: uma lenda no original
Veja também a versão da lenda comentada por Francisco Martins dos Santos e as informações complementares de J. Muniz Jr.
Hipupiára: uma lenda no original
Veja também a versão da lenda comentada por Francisco Martins dos Santos e as informações complementares de J. Muniz Jr.
Uma
das mais tradicionais lendas de São Vicente é a do monstro marinho
Hipupiára (aparentemente um leão marinho) e ao contrário das
lendas comuns, tem até data de surgimento (1564) e registro
contemporâneo, pois mereceu do historiador Pero de Magalhães
Gândavo as páginas 62 a 66 de sua História
da Província de Sãcta Cruz a que vulgarmente chamamos Brasil.
"Impresso em Lisboa na officina de Antonio Gonsalues" em
1576, o livro é raríssimo, pois teve circulação limitada em
função das revelações que continha sobre a economia colonial, os
costumes indígenas e a história natural da então colônia, que a
Coroa portuguesa não desejava divulgar devido à concorrência
comercial e política. Um dos dois únicos exemplares conhecidos da
obra é conservado na Biblioteca
Nacional,
no Rio de Janeiro:
A
lenda do Hipupiara
Naquele
tempo, embora São Vicente fosse a sede ou cabeça da Capitania do
mesmo nome, os capitães-mores ou governadores já residiam em
Santos, de onde dirigiam a terra e o povo de sua jurisdição, e isso
desde que Brás Cubas o fizera, em seu segundo governo de 1552.
Entretanto,
costumavam os capitães-mores manter na Vila Capital, para
atendimentos de rotina e articulações necessárias, um capitão de
sua confiança, por vezes causando complicações que obrigavam o
substituto a ir a Santos, por terra, pelo Caminho de São Jorge, que
era o mais curto, ou por água em circuito, seguindo pelo braço do
Iriripiranga (atual Casqueiro).
Era
o que acontecia em 1564, quando governava a capitania o capitão-mor
Pedro Ferras Barreto, que tinha sede e residência na mesma casa do
Conselho ou Senado da Câmara, em Santos, enquanto fazia suas vezes
na Vila de São Vicente o capitão jovem e impetuoso Baltazar
Ferreira, filho do nobre Jorge Ferreira, que já fora capitão-mor e
ainda o seria, pela segunda vez, pouco tempo depois.
Baltazar
- desde que seu irmão Jerônimo fora aprisionado e comido pelos
rudes tamoios de Maenbipa e Ubatuba, num ataque à Bertioga, ocasião
em que ele escapara do mesmo fim pelo heroísmo dos irmãos Braga, e
tendo em vista a sua belicosidade quase irresponsável - fora
afastado por seu pai, indo residir em São Vicente, fora das lutas
permanentes que o porto grande representava, de ataque ou defesa.
Residia o capitão Baltazar na Casa de Pedra, misto de sede de
Governo, fortaleza e cadeia pública onde o donatário Martim Afonso
despachara e residira, de janeiro de 1532 até maio do ano seguinte.
Tinha ele uma índia escrava, que pertencia a seu pai mas estava
também na Casa de Pedra, por ser pessoa de extrema confiança.
Chamava-se Irecê e o servia em todos os setores domésticos.
Apesar
da confiança que merecia, Irecê, por ser escrava e por gostar de um
escravo, que trabalhava numa fazenda do continente fronteiro, e era
índio como ela, praticava fugas noturnas, para encontrar-se com seu
Andirá, bem avançada a noite, na Praia da Vila, a salvo dos olhos
mexeriqueiros.
Apenas
uma índia velha, tida como feiticeira, que vivia ali perto, no morro
vizinho, sabia das suas andanças noturnas e dos encontros com
Andirá, e foi ela que um dia lhe fez ver que o capitão Baltazar era
um moço bom, amigo dos índios, e não ia gostar de saber que ela se
encontrava com Andirá na calada da noite e que tinha na cabeça a
idéia de fugir com ele para as bandas do Sul. Irecê ficara muito
espantada com as palavras da feiticeira, pois não contara a ninguém
aquele segredo alimentado em seu íntimo...
A
índia velha lhe dissera que era melhor contar o seu caso ao capitão,
pedindo que a ajudasse, que lhe permitisse casar com o seu Andirá. O
capitão Baltazar poderia até dar um jeito... Completando o
conselho, a índia velha terminava com um aviso:
-
Irecê... os espíritos do mar não gostam disso, não... e, de
repente, podem mandar um castigo pr'a você!
Assim,
naquela noite, foi com muito medo que Irecê realizara mais uma das
suas fugas noturnas, para o encontro na beira do mar, parecendo-lhe
ver a figura da velha espiando ou um vigilante escondido para
prendê-la. Estava resolvida a contar a Andirá o sucedido e ver o
que ele decidia.
A
noite estava muito quieta, e um vento brando e morno vinha de longe,
da Ponta da Capetuba. A baía estava mansa como nunca e o céu muito
claro. A vila inteira dormia, encarapitada no pequeno outeiro. Irecê
já estava na praia e viu à beira d'água a canoa em que Andirá
sempre vinha, mas Andirá mesmo, não estava.
A
índia emitiu um piado de pássaro noturno, comum entre eles, mas não
teve resposta. Era estranho, muito estranho. Já ia voltar, cheia de
pressentimentos, lembrando-se das palavras da índia velha, e
caminhava em direção ao campo de Jundú, que mediava entre a praia
e o outeirinho da Vila, quando ouviu dois urros pavorosos, como de
jaguar ferido, e viu em seguida, mal divisado na sombra do próprio
jundú, um vulto enorme, gigantesco, que caminhava esquisitamente, os
braços abertos, uma cabeça comprida e desmedida, com uma altura de
quase três metros. Parecia-lhe um "curupira", um fantasma
do mar ou das florestas. Parecia tudo menos gente, pelo tamanho e
pelos gritos de animal que dava. Decerto era mesmo o demônio e era o
castigo lembrado pela feiticeira...
Irecê,
toda em tremores, correu como pôde para a Casa de Pedra. Foi bater à
porta do capitão, embora sabendo que ele dormia. Chorava e gemia
alto, para que ele ouvisse, vencendo o medo de um tal ato. Baltazar
Ferreira perguntou-lhe o que queria e não deu importância ao que
ela contava apavorada. Gritou por detrás da porta que não fizesse
muito barulho, que fosse ver outra vez, e ver bem, para que ele não
se levantasse à toa e não fosse de espada ao encontro de uma
invenção. Ai dela se isso acontecesse.
Irecê
ficou desesperada e, só então, viu que o capitão não estranhava
porque estaria ela acordada e na praia àquela hora... Tornou a
correr ao jundú, mas, por outro lado, saindo pela porta da torre de
vigia, na base do outeirinho. Correu como podia ao jundú; de uma
certa distância, viu o fantasma no mesmo ponto e voltou ainda mais
depressa, chamando seu senhor, afirmando em voz lamentosa junto à
sua porta, que era bicho horrível e gigantesco. O bicho decerto
queria sangue, e ameaçava toda a vila!... Irecê pedia ao capitão
que corresse enquanto era tempo... talvez fosse o demônio... e seria
bom chamar os padres do Colégio para esconjurá-lo!...
Irecê
perdera o controle de si mesma, desatinava, e Baltazar Ferreira não
tivera outro remédio. Saiu quase como estava, metendo o gibão de
qualquer jeito e tomando da espada, que ficava sempre ao alcance de
seu braço. A índia caminhou logo atrás dele.
Quando
iam atravessando o grande campo de jundú, ouviram-se novos urros e
gritos roucos da aparição, e logo Batazar Ferreira viu, à pequena
distância, o monstro que Irecê descrevera.
-
Tu tens razão - disse ele -, é mesmo coisa grande e feia!... Mas
vou ver de perto!...
O
bicho monstruoso, parecendo adivinhar a intenção de Baltazar,
pôs-se a caminhar, gingando como um bêbado em direção da praia.
Com grande resolução, o filho de George [sic:
correto é Jorge]
Ferreira, que enfrentara a fúria dos tupinambás na Bertioga ao lado
dos Bragas e de seu irmão, embora não pudesse ainda dizer que
monstro seria aquele e sem acreditar muito em demônios e aparições,
correu para cercar o estranho animal - que devia ser um gigante
marinho, capaz de caminhar como se estivesse em pé. Desembainhando a
espada de guerra, do mais puro aço de Toledo, pôs-se à frente do
animal, que parecia, pelo tamanho e pela grossura, um elefante em
forma quase humana, tendo os pés como se fossem barbatanas.
Baltazar
Ferreira raciocinou depressa. Já tinha ouvido falar de tais
monstros, não no Brasil, mas na Europa, nas terras frias do Norte.
Nunca os vira, pois nascera em Santos, e menos ainda em pé, naquela
postura ameaçadora, como ele estava agora, roncando e dando uivos
pavorosos. Segurou com força o copo da pesada espada e deu tremenda
estocada à altura do ventre do bicharoco, atravessando-lhe o
corpanzil. O animal fez um movimento furioso com os braços e tombou
sobre o capitão vicentino, urrando com mais força e esguichando
sangue.
Rápido
e calmo, Baltazar, sem nada ver, pela sangueira quente e grossa que
lhe emprestara os cabelos e descia sobre todo o rosto, saltou para o
lado, deixando que o bicho se estatelasse na areia.
Com
os gritos de Irecê, que temia pela sorte do amo, já chegavam
guardas da Casa de Pedra, escravos da vizinhança e alguns índios da
base do morro. Naquele mesmo instante, corria o jovem capitão o
maior perigo do seu estranho combate. O Hipupiara - que era o nome do
monstro marinho, segundo disseram depois os índios, cujo significado
era "demônio da água" - recobrara um pouco de energia e,
num último arranco, escancarando a bocarra, entre urros,
precipitava-se sobre ele, de surpresa. Baltazar só teve tempo de
recuar, metendo-lhe um golpe sobre a cabeça, mais como defesa,
vendo-o então arrastar-se pesadamente, como se quisesse fugir para
dentro do mar.
Com
a chegada daquele verdadeiro socorro de homens armados, a cena
terminou. Vários daqueles homens foram alcançar o monstruoso animal
já nas primeiras maretas, retirando-o das águas como em agonia.
O
Hipupiara foi arrastado para a Vila, segundo disseram, e ali ficou
exposto até o fim daquele dia, ao que consta para evitar crendices e
superstições exageradas entre o povo.
Conforme
o relato de um dos cronistas da época, Baltazar Ferreira "saíra
todavia desta batalha tão sem alento, com a visão deste medonho
animal ficara tão perturbado e suspenso, que perguntando-lhe o pai,
que era o que lhe havia acontecido, não lhe pôde responder, e assim
como assombrado, sem falar coisa alguma por um grande espaço".
Perdurou
por muito tempo, em São Vicente, em Santos e por todo o litoral, a
lembrança, mista de horror, do fantástico Hipupiara. Estrangeiros
de vários países exploraram, mais do que os brasileiros, a história
do fabuloso animal aparecido naquele ano de 1564. Ninguém contudo se
lembrou de perguntar ou comentar a primeira parte do pequeno drama.
Ninguém falou da única vítima presumível do monstro vicentino,
daquele pobre Andirá, que fora causa das fugas noturnas de Irecê, e
que nunca mais apareceu, deixando como lembrança, entre o mistério
e o silêncio, aquele vestígio material, a sua pequena canoa e seus
pertences, à beira do mar.
Em
verdade, ninguém procurou saber se ele morrera - e se fora, como
parecia, o primeiro e único tributo pago pela Vila ao Hipupiara.
Somente Irecê, a índia de Baltazar Ferreira, a pobre heroína
ocasional daqueles registros aparentemente lendários, considerou
real e chorou a morte assombrada... do seu herói e quase raptor.
Monstro
marinho surgiu em
São Vicente em 1564
Vem
de longínquas eras a crença na existência de seres estranhos e
ferozes, espantosos ou maléficos que povoaram a Terra. As lendas e
mitos engendrados pela criatividade imaginativa do ser humano nos
legaram aspectos lendários e míticos, através de narrativas das
mais absurdas e fantásticas.
De
fato, desde os tempos mais remotos, predominavam incríveis relatos a
respeito de criaturas quiméricas que se deslocavam pela vastidão
dos oceanos, atemorizando os homens do mar. Tais narrativas falavam
de tritões, sereias, serpentes marinhas e outras figuras horrendas
que povoavam os mares intermináveis.
Em
1560, um padre que estava na Ilha de Manar, distante 200 léguas
(aproximadamente 1.200 quilômetros de Goa), foi chamado às pressas
por um grupo de pescadores para ver alguns tritões e sereias que
estavam presos nas redes da embarcação. Atendendo ao chamado, o
religioso pôde verificar as estranhas criaturas, que tinham uma
certa semelhança com os seres humanos, ostentando forma de peixe
(cauda) da cintura para baixo.
Um
relato do livro Entretiens
de Mer,
editado em 1643, fala de um tritão ou homem marinho que apareceu na
costa da Bretanha e, segundo pôde ser observado pelos pescadores,
tinha os olhos sombrios e uma vasta cabeleira, que flutuava sobre as
espáduas, além de uma barba que chegava até a altura da cintura.
Ele rompeu a rede que foi atirada para capturá-lo, permanecendo com
a parte inferior na água, batendo as mãos e fazendo um ruído
estridente com a boca, até desaparecer sob o marulhar das ondas.
Na
época dos descobrimentos, antigos relatos mitológicos ainda
aguçavam a mente dos navegadores e aventureiros que ousaram singrar
os mares tenebrosos, sombrios e perigosos. Por aquele tempo,
destemidas tripulações que guarneciam os barcos à vela cruzaram os
oceanos em busca de terras incógnitas e misteriosas, sempre atentos,
procurando avistar profundos abismos ou encontrar algum monstro
marinho na superfície da água.
Quando
os navegadores portugueses chegaram ao Brasil, corria a notícia de
serpentes monstruosas e de tantas outras assombrosas aberrações.
Tanto é que os indígenas tinham pavor da ipupiara,
que, segundo a crença, era o "demônio das águas" e que,
além de paralisá-los com o olhar profundo, cingia-os com um abraço
moral, arrastando-os para o fundo do mar.
Na
sua História
da Província de Santa Cruz
(Lisboa, 1575), o escritor Pero de Magalhães Gandavo conta
que, no decorrer de 1564, apareceu um monstro marinho na Vila de São
Vicente e que foi abatido a golpes de espada pelo capitão Baltazar
Ferreira, lugar-tenente do capitão-mor Jorge Ferreira.
Segundo
o relato, depois de morto, o "monstro" foi arrastado da
praia para a praça da vila, onde ficou exposto diante da população
estupefata, uma vez que tinha cerca de 15 palmos de comprimento e
umas "serdas (pêlos) muy grandes", parecendo bigodes.
A
luta entre a fantástica Hipupyara e o nobre capitão, reproduzida na
obra de Gandavo, levou o historiador Benedito Calixto a tecer o
seguinte comentário, publicado no Indicador
Comercial Santista
(1908): "Há, na verdade, um tanto de exagero e imperícia no
desenho do monstro, que foi traçado por algum curioso, aqui em São
Vicente, e corrigido pelo artista gravador em Lisboa, que humanizou a
figura de Balthazar Ferreira e (o gravador) marcou, no fundo da
gravura, com minúcias e nitidez, uma parte da Vila de São Vicente,
com seus edifícios e templos, um tanto fantasiosos e arbitrários".
Para
o naturalista Charles J. Cornish, o monstro marinho poderia ser um
lamantino da América, conhecido como lobo ou leão-marinho, com as
seguintes características: "Cauda arredondada, nadadeiras com
unhas externas, duma independência e energia notáveis (...) O corpo
semeado de pêlos curtos. Não tem sete vértebras cervicais, como
todos os mamíferos, e sim, seis. A natureza da alimentação e a
estrutura dos dentes indica que os serênicos
têm o hábito de ruminar..."
Na
época atual, os turistas e visitantes podem andar tranqüilamente em
São Vicente sem receio de encontrar o decantado "demónio das
águas". Isso, apesar de alguns pingüins, focas, leões e
outros pequenos seres marinhos surgirem de vez em quando, trazidos
pelas correntes marítimas e que, devido aos ferimentos ou exaustão,
são acolhidos em terra.
O
certo é que os forasteiros poderão desfrutar de um belo e aprazível
recanto denominado Parque Ipupiara, que abrange, inclusive, a
tradicional Praça da Biquinha.
Uma
ilha
que, para alguns, nem ilha é, e que já teve os nomes de Ilha das
Cobras e Ilha das Cabras, entre outros: assim é a Ilha
Porchat,
que o pesquisador J. Muniz Jr. descreve neste artigo, publicado em 17
de setembro de 1995 no jornal santista A
Tribuna:
A
histórica e lendária Ilha Porchat
Considerada
um dos mais belos recantos da paisagem vicentina e um dos redutos
históricos mais antigos da orla da praia, a Ilha Porchat já era
conhecida pelos navegantes e aventureiros que percorriam o litoral
brasileiro, antes da chegada do capitão-mor Martim Afonso de Souza.
Sabe-se que, em época longínqua, era dotada de uma tropical
vegetação, verdadeira "ilha florestal" inexpugnável,
cuja espessa mata escondia as sentinelas avançadas de olho na
amplidão do oceano, tentando vislumbrar os barcos piratas que
bordejavam a costa atlântica, pilhando e saqueando pelo fogo e pela
espada.
Devido
à sua posição estratégica à entrada da Baía de São Vicente,
constituía-se num ponto de referência, num marco geográfico que
identificava a entrada da vila fundada pelo donatário Martim Afonso,
uma vez que, num lugar impreciso, foi fixado um padrão com as Armas
de Portugal. Assim é que, no início da colonização, denominava-se
Ilha do Mudde, deturpada com o correr do tempo para Ilha do Mudo. Na
opinião abalizada do saudoso historiador Francisco Martins dos
Santos, o vocábulo árabe "Mudd" significa "Modelo,
exemplo, padrão, referência" e, aplicado à ilha, em sua forma
nominativa "Muddu", queria dizer que era uma referência
"para os que quisessem ir à Vila de São Vicente, por terra ou
por mar".
Muita
coisa já foi escrita a seu respeito, existindo versões históricas
de que, em época remota, foi adquirida por um colono português sem
o dom da palavra, motivo pelo qual passou a chamar-se Ilha do Mudo.
Depois do nome primitivo, teve a alcunha de Ilha das Cobras, isso em
fins do século XVIII, quando foi vendida a Luiz Antônio de Souza.
Logo após a primeira década do século XIX, passou às mãos de
outro lusitano, que iniciou a criação de caprinos em suas encostas,
levando os habitantes de São Vicente a chamá-la de Ilha das Cabras.
Em
meados do oitocentismo, foi negociada de um religioso para um dos
membros da conceituada família Porchat, que lhe passou o sobrenome.
Apesar de tornar-se propriedade do cidadão Manuel Augusto de
Oliveira Alfaya, em 1887, a denominação de Ilha Porchat foi
mantida. No início deste século [N.E.:
século XX],
provavelmente tenha pertencido ao comendador Manuel Alfaya Rodrigues.
Finalmente, foi alienada ao senhor Francisco Fracaroli Sobrinho em
1937, por um dos herdeiros de Manuel Augusto.
Ilha
Porchat, vista da Praia do Itararé, tendo ao fundo a Ponta do
Itaipu, no início do século XX
Imagem reproduzida do jornal santista A Tribuna de 17/9/1995
Imagem reproduzida do jornal santista A Tribuna de 17/9/1995
A
partir de 1870, começaram a chegar os primeiros ocupantes:
pescadores, caiçaras, até escravos forros, que levantaram rústicas
moradias no seu território, surgindo daí as primeiras construções.
Devido ainda ao seu pitoresco visual, recebia as famílias e
forasteiros que passeavam e se divertiam nos fins de semana e
temporadas de verão, desfrutando do magnífico panorama avistado do
seu topo, de onde se descortina um cenário imponente.
Cantada
e decantada através dos tempos, além da sua curiosa história, a
ilha é envolta por fascinantes lendas, focalizando-a em épocas
distantes, quando tinha uma beleza selvagem e servia de refúgio de
piratas que desembarcavam no seu solo com preciosas arcas carregadas
de dobrões de ouro.
A
lenda da Toca
do Índio
revela uma suposta abertura por dentre as rochas que recebem o
impacto do mar, cujo acesso só é possível com a maré baixa,
através de um túnel natural que desemboca numa ampla gruta,
lembrando fabuloso esconderijo da romanesca Ilha de Monte Cristo.
Já
se disse que é uma península e não uma ilha, pois somente ficava
cercada de água por ocasião das grandes marés, quando o mar
inundava parte da praia, isolando-a completamente, transformando-se
assim numa península-ilha.
Antes da construção da sólida ponte ali existente, os moradores e
veranistas eram transportados por cadeirinhas de rodas puxadas por
robustos carregadores que faziam ponto na praia.
Nos
tempos românticos do jogo, quando os cassinos atraíam muita gente
envolvida pela sedução das roletas e pelos suntuosos espetáculos
artísticos, o Cassino de São Vicente, que existiu na subida (do
lado da Praia do Itararé) foi ponto de encontro da alta sociedade. E
para lá se dirigiam grandes personalidades da Baixada Santista e da
Capital, dentre capitalistas, banqueiros, empresários, políticos,
ricos negociantes, pessoas abastadas, turistas e até aventureiros
trajados a rigor, inclusive formosas e sedutoras mulheres,
elegantemente vestidas e ostentando valiosas jóias. Era uma
fascinação!
O
cassino da ilha
encantada
(denominação da época) promovia ainda matinês dançantes aos
domingos, sob os acordes musicais de renomadas orquestras, magistrais
shows
a cargo de astros e estrelas de renome internacional. Além das
diversões diuturnas, bares e restaurantes de alto nível, balneário
com cabines para banhistas, destacavam-se igualmente retumbantes
bailes carnavalescos no tríduo momesco, para a alegria dos animados
foliões.
Todavia,
logo após o término da II Guerra Mundial, a sua fase romântica
chegou ao fim, com a proibição do jogo, que resultou no fechamento
dos cassinos em todo o País. Foi então loteada e vendida a
particulares, surgindo belas residências de veraneio e,
posteriormente, os majestosos edifícios erguidos em seu contorno. E
no lugar do antigo cassino foi erigida a bela sede do tradicional
Ilha Porchat Clube, que, por sua vez, tornou-se um dos pontos de
encontro da sociedade local em termos modernos.
No
tocante à ilha, continua encantadora, com o seu vislumbrante visual,
rochas e precipícios, alamedas, modernas construções e o
verde-mar, sempre atraindo a atenção dos turistas, apesar dos
problemas que a envolvem, com os constantes deslizamentos em suas
encostas. Mesmo assim, não deve ser esquecida, pois, além dos seus
atrativos turísticos, evoca páginas e páginas históricas e
lendárias do passado vicentino.
Bibliografia:
Calixto,
Benedito - Capitanias
Paulistas,
Estab. Gráf. J. Rossetti, São Paulo, 1924;
Luís,
Washington - Na
Capitania de S. Vicente,
Livraria Martins Editora, São Paulo, 1956;
Madre de
Deus, Gaspar (Frei) - Memórias
para a História da Capitania de São Vicente,
Livraria Martins Editora, São Paulo, 1953;
Martins dos
Santos, Francisco - A
Ilha do Mudo,
jornal A
Tribuna,
18 de junho de 1953;
Muniz Jr., J.
- Ilha
Porchat: um marco histórico,
jornal Cidade
de Santos,
20 de janeiro de 1980.
(*)
J. Muniz Jr. é jornalista, pesquisador de história e autor de
várias obras literárias sobre a Baixada Santista, vencedor do
Prêmio Clio de História, de 1983, da Academia Paulistana da
História e Ordem Nacional dos Bandeirantes.
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